sexta-feira, 30 de março de 2007

Como cheguei aqui... (1)


CONSTRUINDO UMA IDENTIDADE

“Um homem se propõe a tarefa de esboçar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de remos, de montanhas, de balas, de naves, de ilhas, de peixes, de habitações, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto traça a imagem do seu rosto.”
Jorge Luís Borges


As palavras de Borges demonstram de maneira ímpar a construção de uma identidade. A minha vida foi povoada por minha família, por países, cidades, culturas diferentes, pessoas, idéias, escolas, aulas, alunos e muitos sonhos. A curiosidade e a vontade de aprender têm entremeado esse caminho na construção da minha identidade de professora e pessoa.

Nasci e vivi minha primeira infância em Montevidéu (Uruguai), em uma família inglesa misturado com escocês. Com cinco anos fui à escola, um colégio britânico, bilíngüe. Fui alfabetizada nas duas línguas - inglês e espanhol – concomitantemente, ambas minhas línguas maternas. Convivi com duas culturas. Sempre falamos inglês em casa e ao viver no Uruguai, estava imersa nessa cultura. Lembro-me de muito pouco daquela época. As coisas que ficam são lembranças de diferenças culturais em atividades como aniversários, horários e alimentação entre a minha vida e a dos meus primos, com a vida dos vizinhos, dos meus amigos, dos meus colegas.

Com dez anos vim morar no Brasil. Lembro-me de ter chegado a Pelotas em um sábado e ter ido para o colégio na segunda. Senti-me um peixe fora d’água, lembro como se fosse hoje. Não conhecia ninguém, não entendia ninguém e não era entendida por ninguém. Foi uma experiência assustadora, mas logo passamos a nos entender, considerando que a interação que se estabeleceu levou à aquisição do português em pouco tempo.

Estive dois anos na escola em Pelotas, ambos na quinta série. Desse período, o que mais me lembro é a diferença de metodologia nas aulas com aquilo a que eu estava acostumada. Primeiro foi o tratamento formal, com o qual eu não estava acostumada. Aqui lembro perfeitamente da minha surpresa quando a professora me chamou de “senhora”. Isso foi algo que ficou muito marcado e que, mais tarde conclui ser a diferença entre o português e o inglês – era uma questão de língua e não tanto de formalidade.

Outra diferença se verificava na metodologia de ensino. Aqui havia muita leitura de textos sobre o conteúdo e questionários intermináveis que tínhamos que memorizar para as provas. Na escola britânica, no Uruguai, eu havia sido acostumada com um “prosear” na sala de aula, como diz Rubem Alves, com contação de histórias, muita leitura e expressão das minhas idéias, seja por escrito, oralmente ou por desenho.

Ser aprovada aqui era algo que alcançava com muita dificuldade, por duas razões básicas: português era língua estrangeira naquele momento e o fato de ter que memorizar conceitos que eu não havia entendido. Além disso, meus pais já haviam planejado meu futuro, o que implicava em ir a uma outra escola britânica, desta vez em Buenos Aires, na Argentina, e não deram muita importância para meu fracasso escolar. Fiz muitos amigos neste período, lembro-me dos piqueniques escolares, mas não lembro do nome dos meus professores.

Dos doze aos dezesseis anos passei na Argentina em uma escola inglesa, vindo pra casa nas férias, e me formei no ensino médio em inglês. Desse período tenho muitas lembranças: as discussões intermináveis sobre obras literárias, o aprender a escrever de maneira coesa e coerente, as histórias de vida que nossa professora da Bulgária nos contava, o esporte (tênis, hockey, volley, natação), que nos ensinou a pensar no outro e a como perder, as aulas de francês que nos ensinavam a falar e escrever em francês, enfim, os ensinamentos sobre a vida.

Quando terminei o ensino médio e voltei para Pelotas, informei aos meus pais que eu não queria continuar estudando. Meu pai aceitou, mas impôs uma condição: “então vais trabalhar.” Sempre fomos responsabilizados por nossas decisões.

Continua ...

8 comentários:

Udi disse...

Que delícia de texto fluente e bem estruturado que só quem tem sua própria história muito bem entendida e resolvida é capaz de escrever.
Obrigada, Anne querida!

Amanda Magalhães Rodrigues Arthur disse...

Vivir para contarla!
Ansiosa pelas cenas dos próximos capítulos...

Ernesto Dias Jr. disse...

Anne, que delícia!
Conta mais, conta...
(a gente quer saber TUDINHO)

Anônimo disse...

E quem são as pessoas da foto????
Ah, posta de noite hoje....

Anônimo disse...

Anne:
Que formação maravilhosa e heterogênea, que expande a consciência pra percepçoes, conceitos, diferenças enriquecedoras, e prepara pra vida.Isso explica muito você.

Flavio Ferrari disse...

Tá explicado.
Tks por partilhar um pouco de sua vida com a gente. Muito simpático.
E a prosa sintética e inteligente e ágil, além de entreter, poupa tempo para os detalhes da parte mais divertida, que está por vir. Se estiver com preguiça, Ernesto ou eu continuamos para você... A gente já se acostumou com isso.

Anônimo disse...

Tu já pensaste em escrever uma autobiografia???
Me parece que tens muito a ensinar ainda!
Tua vida em si é uma lição... a maneira 'incomum' como foste educada... as variadas e, por vezes, simultâneas experiências que viveste...

Anne M. Moor disse...

Bom dia!
Udi e Lú: Obrigada minhas amigas! Hoje entendida está... Se bem resolvida não sei... A gente tá sempre 'resolvendo'... e entendo atitudes tbm. :-)

Amanda: Virão...

Ernesto: TUDINHO não sei se vou contar :-), ...

Lú: São 2 tias e primas desta família de várias culturas... Eu com 19 kilos a mais!!!!!!!!!!!!!

Flávio: Contar-me ajuda a me ver e a entender certas coisas da minha vida...

Michele: Minha ex-aluna e hoje colega... tenho muito pra ME ensinar ainda... Escrever uma autobiografia??? Don't think so... Segue a saga por aqui... :-)